Raquel Velho and Laura
Kemmer
University College London e University of Hamburg
A história por trás da produção deste
volume de CROLAR é extremamente autobiográfica. Nós, as
coautoras, Laura Kemmer e Raquel Velho, nos encontramos em uma
fortuita ocasião na Universidade de Lancaster (UK) para o
Encontro Anual de Pós-graduação. Curiosamente, percebemos que
ao longo de nosso trabalho de doutorado, trocávamos de lugar
constantemente: Velho, brasileira, está na University College
London (Reino Unido) e desenvolve sua pesquisa sobre
acessibilidade no transporte público em Londres. Enquanto
isso, Kemmer, alemã, baseada na Universidade de Hamburgo
(Alemanha), está atualmente realizando trabalho de campo sobre
o último bonde “público” no Rio de Janeiro. Embora não
tenhamos nos encontrado fisicamente de novo, nossos caminhos
se cruzaram sobre o oceano Atlântico enquanto voávamos para
visitar nossas respectivas famílias nos dois continentes.
A ironia desta troca de lugares não se perdeu em nós e se
tornou um assunto para conversa tanto no encontro em Lancaster
quanto ao longo do processo editorial deste volume. Na
verdade, ela ajudou a moldar a chamada para este volume de
CROLAR desde o primeiro momento: o fato de que a tecnologia de
transporte se desenvolveu de tal maneira que uma Europeia e
uma Latino-americana troquem de posições, desenvolvam
interesses paralelos em temas similares em cidades com um
oceano de distância, e tenham meios (digitais) para manter
contato durante meses... Hoje em dia, isto não parece
marcante. Mas isso é precisamente o mais notável sobre isso.
No entanto, apesar de nossas surpresas pessoais pela situação,
nossa inserção em tradições acadêmicas e mundos diferentes nos
fez questionar sobre as novas tradições de pensamento que
estávamos agora imersas.
Em setembro de 2015, nós colocamos a chamada para esta edição
de CROLAR, “Ciência, Tecnologia, Sociedade – e as Américas?”.
A intenção era explorar a matriz do conhecimento que vem sendo
produzido na América Latina relacionada à(s) ciência(s) e a
tecnologia(s), de que maneira interagem com a sociedade, e
vice versa. Além disso, nos perguntávamos se havia uma
abordagem regional particular nos estudos sobre Ciência e
Tecnologia, dada as origens acadêmicas diferentes ao
hemisfério norte. Queríamos também interrogar o potencial
destes estudos para combater desigualdades sociais e
políticas. Estamos felizes em compartilhar o resultado com os
leitores de CROLAR, e acreditar que ele é uma amostra
interessante da diversidade e amplitude do campo dos estudos
sociais de ciência e tecnologia na América Latina.
Na seção focus
(foco) desta edição, temos uma variedade de resenhas de livros
nas quais identificamos três categorias. Primeiramente, temos
livros que colocam a América Latina em seu próprio núcleo,
seja na escolha de casos de estudo ou na comparação temas
locais x globais. Os volumes editados de Beyond Imported
Magic (Medina et al.) e Perspectivas
Latinoamericanas en el Estudio Social de la Ciencia, la
Tecnología y la Sociedad
(Kreimer et al.) são ambos extraordinários em suas amplitudes
e são dignos de uma categoria por si só. Tanto pelos numerosos capítulos que
contrastam e comparam ciências e tecnologias produzidas na
América Latina, como também o campo dos estudos sobre Ciência
e Tecnologia por si. Enquanto isso, a visão histórica de
Adriana Feld da política científica argentina ao longo dos
anos 1940-1980 (Ciencia y política(s) en Argentina
(1943-1983)) mostra como são
importantes os contextos e as ideologias sócio-históricas
locais para o desenvolvimento institucional Uma frutífera
confrontação dos processos regionais e globais pode ser
encontrada na edição de Made in Latin America (Alperin and Fischman), que
contextualiza os desafios específicos, mas também
apresenta as realizações de publicações de Acesso Aberto nas
plataformas e jornais latino-americanos.
Um Segundo grupo de livros enfoca políticas, políticas,
tecnologias e resistências de diversos tipos. No livro de
Shirley Franco Sobrevivendo ao Mito
da Destruição Total, a autora explora como, apesar dos anúncios
oficiais do governo brasileiro sobre sua destruição, os
arquivos conseguem sobreviver por meio das redes criadas pelas
próprias autoridades em um processo que a autora denomina
“ramificação”. Apesar dos diferentes domínios políticos, os
casos em Risco, Ambiente e
Saúde (Di
Giulio) e Assembling Policy trazem a luz como
momentos de risco, insuficiência e rupturas reorganizam o
social e o político de maneiras varias.
O último grupo explora o tema da tecnologia e inclusão social,
inovação e qualidade de vida. A edição do volume Políticas
Tecnológicas y Tecnologías Políticas (Hernán et al.) se
concentra na disparidade marcante na América Latina entre o
investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia e a
falta de acesso por parte da população. No mesmo caminho, Tecnologia
Social
(Dagnino) utiliza a abordagem marxista para analisar a
tecnologia e propõe que novas formas de inovação precisam ser
propostas baseadas em solidariedade e autogestão. O livro de
Alberto Nieto (La ciencia no puede
ser sin pecado un adorno) aborda um tema semelhante, provocando
discussões sobre o papel de inovações para provocar melhorias
na qualidade de vida dos cidadãos.
Temos o prazer de apresentar a resenha de Renato Dagnino do
clássico livro de Amílcar Herrera, Ciencia
y Politica en America Latina. Herrera é um pioneiro nos estudos sociais
sobre ciência na América Latina e este livro em particular foi
publicado há quarenta anos e ainda prova ser uma leitura
relevante. Herrera era apologético à esquerda que percebeu a
América Latina como subjugada a um imperialismo no qual ainda
desempenhava um papel feudal para o hemisfério norte. Como
Dagnino discute, o trabalho de Herrera na política científica
e suas inúmeras ideias sobre inovações tecnológicas antecipam
o trabalho então desenvolvido no Norte, particularmente na sua
resistência a noções simplistas como o modelo linear de
inovação – no qual a pesquisa científica resulta em
desenvolvimento tecnológico e, portanto, um produto de
mercado.
A seção de interventions (intervenções) neste
volume propõe dois casos interessantes, ambos sobre a
introdução de programas ou inovações a um contexto brasileiro
e como eles foram traduzidos e transformados no processo de
importação. O primeiro caso é do Masterclass, um programa
desenvolvido pelo CERN (Suíça) que pretende ensinar crianças
sobre física de partículas. O segundo exemplo é o do Uber
(EUA), um aplicativo de táxi, que tem repercussões por todo o
mundo. Em ambos os casos, a reação dos brasileiros diante
desses programas mostra resistências ou subversões das suas aplicações
originais.
Uma adição interessante a este volume é o novo modelo de
artigos de resenha (review articles) com um foco temático,
em que diversos livros sobre um determinado tópico são
analisados em conjunto. Estreando este novo modo que une tanto
discussão quanto resenha temos Nils Brock, revisitando os
debates atuais sobre redes, mídia e comunicação sob a luz das
mudanças tecnológicas e de poder, bem como o artigo de
Fernanda Rosa e Diego Vicentin, que abarca três livros sobre o
tema da internet, da governança e das políticas científicas, particularmente
na sua relação com a privacidade e a segurança cibernética.
Também temos a sorte de apresentar entrevistas com duas
acadêmicas brasileiras proeminentes que acompanharam o
desenvolvimento dos estudos sociais sobre a ciência no Brasil:
Drª Márcia
Regina Barros da Silva e Profª Léa Maria Leme Strini Velho. Cada uma respondeu as
mesmas perguntas, seus interesses no campo, se percebiam
diferenças e desigualdades entre as abordagens nacionais e
internacionais, e suas perspectivas sobre ser mulher dentro da
disciplina.
A seção de current debates (debates atuais) deste volume lida
com novas abordagens para compreender a cidade através dos
sons, elaborada por Torsten Wissman em Geographies
of Urban Sound. O livro Punishment in Paradise (Beattie) apresenta um
rico relato historiográfico sobre como a prisão em massa no século
XIX lança luz sobre os debates de discriminação racial no
Brasil atual.
A edição
deste volume não foi nada menos do que um desafio, como estava
constantemente suspensa em algum lugar sobre o Atlântico e
entre a vacilante ligação pela internet (de forma inesperada,
principalmente do lado europeu, em Londres). Ela serviu como
um constante lembrete da sociedade em que vivemos, com suas
inovações tecnológicas moldando constantemente nossas
percepções do tempo, da distância e dos nossos pares. Mais
importante, este volume tem uma linha costurando os livros
resenhados e as histórias contadas – uma história de
políticas, e uma história do impacto. Apesar da diversidade de
trabalhos apresentados aqui, as origens dos estudos sociais de
Ciência e Tecnologia são políticas, como Dagnino descreve em
sua resenha de Herrera e tanto Drª Silva e Profª Velho
discutem em suas entrevistas. Estas são histórias, que vão além da discussão sobre
as ciências ou as tecnologias. Elas discutem tanto os limites,
e o que não funciona, mas também como a subversão e a
resistência reconfiguram aquilo que é importado do hemisfério
norte. Os estudos sobre ciência e tecnologia na América Latina
podem ser um ato de resistência por si só.
Como editoras, esperamos que este volume ofereça uma nova
porta na qual possam se aventurar neste mundo da sociedade, da
política, das tecnologias e da sociedade. Um mundo que desafie
contos simplistas sobre invenções e criadores e mostre as
batalhas por trás, abrindo espaço e cruzando oceanos.