Renato Dagnino (2014)

Tecnologia Social. Contribuições conceituais e metodológicas

Campina Grande: EDUEPB e Florianopolis: Ed.Insular, 318 p.


Resenhado por Ricardo T. Neder

Universidade de Brasília


A democratização do poder de controle sobre a tecnologia sempre foi uma ideia-força na América Latina, mas em geral tratada de forma subordinada, quando não subalterna, às questões da globalização financeira, produção industrial, política científica e tecnológica autônoma, corporações e burguesia nacional, entre outras grandes questões. No livro aqui em tela dá-se o inverso. O autor trabalha a democratização da tecnologia como eixo central de uma teoria que podemos chamar “latino-americana da tecnologia social” (
89-111).


Nela comparecem três temáticas: democratização da tecnologia, em si, a qual exige referenciais históricos herdados do chamado Pensamento Latino-americano de Ciência, Tecnologia Sociedade (PLACTS); a segunda é a mobilização e capacitação de operadores para a prática da adequação sociotécnica (AST)/tecnologia social; em terceiro as questões sobre a transformação sociotécnica da economia informal/popular no Brasil e América Latina em economia solidária como parte da política de ciência e tecnologia. Os nove capítulos do livro, dessa forma, são entrecortados por estas temáticas.


Os dois primeiros capítulos (“A tecnologia social e seus desafios”, e “Em direção a uma estratégia para redução da pobreza: a economia solidária e a adequação sociotécnica”) aprofundam temas caros à esquerda e à direita. Elaboram distinções acerca da tecnologia convencional
vis-à-vis a tecnologia social. Revisa a noção de autogestão diante da técnica e faz uma contribuição chave: os autores que tratam da economia solidária e da autogestão supõem que a tecnologia é decorrência de formas específicas de organização do processo de trabalho (autogestionário em oposição ao gerencial do capital). Isto é insuficiente, defende Dagnino, pois temos necessidade de transformar a maneira como se organiza o trabalho, tanto quanto sua base tecnológica, mas sobretudo necessitamos revolucionar o substrato científico epistêmico que orienta a tecnologia empresarial.


Trata-se, na visão do autor, de propor a elaboração de uma política de ciência & tecnologia para o fomento a redes da economia popular que possa superar o mito de que um dia ela será absorvida pela economia formal. Até os anos 1980, a questão do desenvolvimento proposto pela esquerda estava assentada no protecionismo econômico e tecnológico, associado a desconcentração de renda (promovida pelo Estado). Era a lógica do “crescer para distribuir”
.


Nos anos 1990-2000, diante do novo paradigma, opera-se sob dois ciclos, um de crise e outro de crescimento. Em ambos ora há redução de postos de trabalho ( jobless growth), ora há perda líquida de empregos (jobloss growth). Este é o dilema presente no modelo neoliberal e neodesenvolvimentista discutido no capítulo 3. Dagnino busca desmontar este dilema. Identifica questões da política republicana e a noção de sociedade civil como problemáticas na formação social indígena e afroeuropeia brasileira. Não há como separar as contradições entre cidadania, nação e povo na América Latina que perpassam as concepções das práticas científicas e tecnológicas. Para dar o passo seguinte, o autor explora o tema da tecnologia e economia popular solidária.


Para aprofundar tal visão teórica deparamos com o núcleo-duro do livro (capítulos 4 “Em direção a uma teoria crítica da tecnologia” e 5 – “Mais insumos metodológicos para a análise, a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologia social”
). A teoria da AST é o coração do livro: ela tem simultaneamente dimensões analítica (processual), normativa (ideológica) e uma heurística operacional.


A analítica se expressa na concepção de que há um código técnico-econômico convencional da tecnologia, continuamente alterado para manter o poder de controle (da tecnologia) sob domínio de um operador externo ao processo de trabalho
. A operacional é uma espiral com várias curvas de complexidade, que envolvem diagnóstico, análise e pesquisa sobre o grau de uso simples da tecnologias, frustradas tentativas de apropriação privada ou coletiva da tecnologia enquanto propriedade dos meios de produção (experiências populares de revitalização ou repotencialização de máquinas e equipamentos como aprendizagem). A dimensão normativa fica clara nos demais capítulos, finais, pois são um diálogo com dirigentes de movimentos sociais, da economia solidária, e com pesquisadores em incubadoras universitárias de cooperativas populares e institutos públicos de pesquisa.


Para uma avaliação da obra, vou apresentar quatro pontos seminais passíveis de críticas: (1) Qual sua relevância?; (2) Tem uma concepção teórica sólida?; (3) Tem fundamentação empírica?; (4) Dialoga com o público-alvo?


(1) Sua relevância é inegável no campo do debate da esquer
da sobre redução da desigualdade e desenvolvimento social. Há uma questão clássica do marxismo, revista por correntes teóricas neomarxistas contemporâneas, sobre o controle exercido sobre a tecnologia capitalista ou convencional, segundo a qual o que caracterizaria esta última é a propriedade privada dos meios de produção. A propriedade privada sozinha é insuficiente para definir o domínio da tecnologia, pois o que está em jogo é o tipo de controle exercido sobre a dinâmica de transformação e mutação da base tecnológica. Tal visão é atualíssima, e nada fica a dever aos estudos contemporâneos europeus e estadunidenses, seja da matriz neoclássica, seja neomarxista, seja ainda dos Estudos CTS (ciência-tecnologia-sociedade). Trata-se de uma contribuição original, abrangente, especialmente relevante para o quadro brasileiro e latino-americano.


(2) A concepção teórica do autor propõe claramente uma tripla formulação para a teoria da adequação sociotécnica (AST)/tecnologia social: as dimensões analítica-processual, normativa-ideológica, e a heurística operacional. Esta formulação tem consistência pois revela um diálogo crítico com a teoria econômica evolucionista (
schumpeteriana) acerca da importância da inovação tecnológica no sistema econômico, e ao mesmo tempo associando-a à desconstrução da noção de neutralidade da ciência. Para tornar a política da tecnologia social realidade são necessários operadores (pesquisadores, docentes, gestores e lideranças, técnicos e assessores de movimentos sociais, estudantil e sindical) conscientes da tarefa de traduzir a questão da democratização da produção do conhecimento gerador de tecnologia. Não se trata de “convencer” ninguém, mas demonstrar que a plataforma cognitiva da tecnologia social é diversa da base cognitiva da tecnologia convencional empresarial. Feito isto, demonstrar o terceiro componente, heurístico-operacional, é o mais complicado para o leitor médio (ponto a seguir comentando).


(3) Obras de envergadura teórica e analítica como esta não conciliam facilmente teoria e análise com tratamento de dados empíricos. Por isto seu ponto fraco é também seu maior trunfo, que é ter um marco teórico para coletar e sistematizar a descrição empírica de experiências paradigmáticas ou casos significativos de inúmeras experiências populares. O que não traz nenhum desmérito para a obra. Tal descrição poderá ser aperfeiçoada por outro/as autor/as filiado/as à corrente interpretativa de Dagnino.


(4) A obra dialoga com seu público-alvo? Sim, eles são vistos como potenciais parceiros e aliados. No campo da universidade, a proposta de Dagnino tem potenciais aliados e parceiros docentes e pesquisadore/as, além dos professores e gestores da rede federal de institutos tecnológicos, das escolas públicas, e cientistas dos institutos estaduais e federais de pesquisa. É claro, o único problema é seu excesso de positivismo, pois em geral aceitam que a tecnologia é uma construção social, mas não que a ciência esteja sujeita a códigos de valores extra-cognitivos. Mas estes contingentes são hoje parte de um novo proletariado. Talvez sejam muito “tecnófilos” por necessidade de manter seu salário. Daí a necessidade de convencê-los de que mais do que autocrítica, nossos pesquisadores precisam de uma boa teoria sobre como praticar uma política tecnológica com a sociedade.