CLASSICS REVISITED


Amílcar Herrera (2015 [1971])

Ciencia y política en América Latina

Cidade do México: Siglo XXI, 206 p.


Resenhado por Renato Dagnino

Universidade Estadual de Campinas


O livro foi escrito por um dos fundadores do Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS) no seio de um intenso debate que mobilizava o meio científico argentino no final dos anos sessenta acerca da elaboração da política de ciência e tecnologia (PCT). Esse pensamento, que possui seguidores em todos os países da região e ainda influencia estudiosos estrangeiros, possui neste livro seu marco analítico-conceitual orientador.


Quatro ideias que o conformam, pelo seu poder de convencimento e porque confrontavam a posição então hegemônica, merecem ser sintetizadas:


(1) Existia na América Latina uma capacidade científica suficiente para remover os obstáculos cognitivos ao nosso desenvolvimento. Era a escassa demanda social por ciência e tecnologia (C&T) que deixava nosso potencial subutilizado. Tratava-se de um obstáculo pervasivo, estrutural, histórica e politicamente determinado por nossa “condição periférica”.

(2) Sua remoção necessitava de um projeto nacional apoiado por segmentos politicamente influentes. Ao colocar novas demandas materiais intensivas em conhecimento original sobre o sistema de ciência e tecnologia, ele inverteria a lógica ofertista e imitativa que presidia nossa PCT.


(3) No plano institucional, esse projeto poderia emular em nosso sistema de ciência e tecnologia uma dinâmica científico-tecnológica endógena, original e prospectiva orientada por áreas-problema econômica, social e estrategicamente relevantes para o país.


(4) A situação tipificada mediante outra ideia-chave – a relação entre política explícita e implícita de ciência e tecnologia – também se alteraria. Deixaria de ocorrer a oposição entre a primeira – aquela que visa ao aumento da capacidade de “oferta” de conhecimento desincorporado e incorporado em pessoas, na universidade e instituições de pesquisa – e a segunda – aquela que, resultado das políticas – fim e do contexto socioeconômico, limita a “demanda” e deixa ocioso nosso potencial de “oferta” (Herrera 2015: 71).


Para que os leitores jovens possam situar e aproveitar as ideias de Herrera para compreender a relação ciência, tecnologia e sociedade e a PCT na América Latina de hoje, é conveniente relembrar algo que eles até podem achar estranho ou démodé: Herrera era de esquerda. E de uma esquerda que não se opunha apenas ao pensamento da elite oligárquica nativa.


Quando ele as formula, o “atraso” em nosso desenvolvimento era atribuído, pela maior parte da esquerda (tradicional) que se apoiava nas formulações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e no reformismo do marxismo stalinista, ao Imperialismo. Em conjunto com os “resquícios feudais” que nos amarravam a um modelo primário-exportador, eles estariam impedindo nosso desenvolvimento independente e soberano.


Ela entendia a “burguesia nacional” como capaz de nuclear uma aliança com o operariado e outros atores em prol de uma revolução democrático-burguesa que fundasse, como havia ocorrido no então “primeiro mundo”, o capitalismo industrial latino-americano que viria a engendrar o socialismo.


Privilegiando o Imperialismo como o “inimigo central” e elegendo como “contradição principal” aquela que opunha essa aliança ao capital estrangeiro, a esquerda tradicional buscava gerar uma mobilização nacional que estimulasse a burguesia industrial nascente a assumir o que era considerado o seu.


A minoria que antepunha a Teoria da Dependência a essa racionalidade (e, também, obviamente aquelas da direita) considerava que a elite local mimetizava aquelas dos países capitalistas avançados. E como estava a elas conectada, de forma subordinada, por fortes laços culturais, políticos e econômicos, não estava interessada em apostar num caminho de desenvolvimento autônomo. A opinião de Herrera a respeito fica clara quando ele afirma – citando Marcos Kaplan – que:


“Trata-se de um empresariado que aparece e se desenvolve tardiamente; em número limitado pela estratificação social rígida; freado por, a sombra de, ou agregado através de forças tradicionais e monopolistas do país e do estrangeiro, com escassas possibilidades de competitividade e capitalização. Seu horizonte não excede os âmbitos do mercantil e monetário. Não representa nem transmite o que mereça preservar da ordem tradicional; nem opera como veículo de inovação.”1


Por não aceitar aquela concepção tradicional, Herrera entendia que o rompimento da “dependência tecnológica” só poderia ocorrer pela via da adoção de um “projeto nacional” que contivesse uma “demanda social por conhecimento autóctone” (Herrera 2015: 147).


E que enquanto não emergisse a relação de forças políticas que permitiria a adoção desse projeto, que ele entendia comosendo de caráter economicamente igualitário, socialmente justo e ambientalmente sensato, as elites empresariais, inclusive as nacionais, não teriam por que aproveitar os resultados da pesquisa ou os profissionais qualificados que estavam sendo gerados no complexo público de ensino superior e de pesquisa.


A escassa demanda cognitiva que as empresas, o Estado e de forma geral a sociedade colocavam a esse complexo não demandavam pesquisa e desenvolvimento (P&D) e se limitavam à adaptação e operação de tecnologia importada (em especial a incorporada em máquinas, equipamentos e insumos) que o processo de industrialização por substituição de importações trazia consigo.


Herrera considerava que enquanto perdurasse nossa condição periférica, seriam muito diferentes as propensões a realizar P&D das empresas dos países avançados e das – nacionais ou estrangeiras – aqui localizadas. E, que seu comportamento permaneceria sensivelmente distinto do visado pela PCT orientada pelo modelo institucional ofertista linear então dominante no mundo inteiro.


Não obstante, predominava entre os fazedores da PCT (como ainda hoje ocorre) a interpretação de que, devido a sua fragilidade, a empresa local necessitava políticas de Estado que a protegessem frente ao capital estrangeiro (como se não estivesse com ele aliado) e a estimulassem a realizar P&D (como se para produzir o que antes era importado ele precisasse disso).


Em termos analítico-conceituais, as ideias que o livro enuncia aportavam ao esforço teórico dos estudiosos dos países de capitalismo avançado – de olhar inside the black box – uma visão “periférica” e, talvez, por isto, avant la lettre. Elas antepunham à “cadeia linear de inovação”, que a empresa local impedia de se completar, a categoria descritiva e normativa de “Sistema de Ciência e Tecnologia” (Herrera 2015: 164) Concebida para dar conta dos obstáculos da condição periférica, ela só mais tarde foi genericamente codificada na Europa, frente ao desafio asiático, como “Sistema Nacional de Inovação” (Freeman 1995). Elas colocavam na agenda acadêmica dos estudos CTS e na agenda política da PCT, o descompasso típico da periferia entre o ritmo da modernização e da internalização de capacidade produtiva tecnologicamente mais sofisticada, de um lado, e as trajetórias de aprendizagem tecnológica e de capacitação científica, de outro (Bell e Pavitt 1995). Com o triângulo de Jorge Sábato – muito amigo de Herrera – elas antecipavam as proposições do Modo 2 (Gibbons et al. 1994) e da Hélice Tripla (Etzkowitz 1993).


Em termos da capacitação profissional, mas também com uma evidente relevância para a PCT e para a orientação do campo dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, elas salientavam que, muito mais do que de “gestão” para tornar mais “eficiente” nossa PCT e azeitar a relação universidade-empresa, o que precisávamos eram analistas de política capazes de atuar na interface entre a policy e a politics da C&T.


Em termos metodológicos, elas contribuíam com um enfoque multidisciplinar à relação CTS centrado nesta interface, pela via da política de C&T. O que o tornava muito distinto do que nascia na Europa como resultado dos olhares disciplinares que a sociologia, a filosofia etc. dirigiam para a C&T. E, também do enfoque que surge já no contexto neoliberal, da Economia da Inovação, lamentavelmente ainda hegemônico nas PCTs dos governos de esquerda da região.


Bibliografia


Bell, Martin and Pavitt, Keith (1995): The development of technological capabilities“, in: Haque, Irfan Ul (Ed.), Trade, technology and international competitiveness, Washington: The World Bank.


Etzkowitz, Henry (1996): “From knowledge flows to the triple helix: The transformation of academic-industry relations in the USA“, in: Industry & Higher Education, December, 337-342.


Freeman, Chris (1995):
The ‘National System of Innovation’ in historical per- spective“, in: Cambridge Journal of Economics, 19, 5-24.


Gibbons, Michael; Limoges, Camille; Nowotny, Helga et al. (Eds. 1994):
The New Production of Knowledge: The Dynamics of Science and Research in Contemporary Societies, London: Sage.


1 “Se trata de un empresariado que aparece y se desarrolla tardíamente; en número limitado por la estratificación social rígida; frenado por, a la sombra de, o en ensamblamiento con fuerzas tradicionales y monopolistas del país y del extranjero, con escasas posibilidades de competitividad y capitalización. Su horizonte no excede los ámbitos de lo mercantil y dinerario. No representa ni transmite lo que merezca preservarse del orden tradicional; ni opera como vehículo de innovación” (Kaplan 1965, cited in Herrera 2015: 78-79).