Peter M. Beattie (2015)
Punishment in Paradise: Race, Slavery, Human Rights, and a Nineteenth-Century Brazilian Penal Colony
Durham and London: Duke University Press, 337 pp.
Resenhado por Bernardo Jurema
Freie Universität Berlin
O arquipélago de Fernando de Noronha, localizado a cerca de 200 milhas da costa nordeste brasileira, é um Sítio do Patrimônio Mundial Natural da UNESCO e uma das destinações turísticas mais desejadas no Brasil. Assim, é fácil esquecer-se de que funcionou como a maior colônia penal do Brasil Imperial (1822-1889). Em seu novo livro, Punishment in Paradise: Race, Slavery, Human Rights, and a Nineteenth-Century Brazilian Penal Colony [Punição no Paraíso: Raça, Escravidão, Direitos humanos e um Colônia Penal no Brasil do Século XIX], Peter M. Beattie, professor de História da University of Michigan, serve-se da ilha como contraste a fim de pôr em evidência a evolução de valores, práticas e percepções culturais na sociedade brasileira e na esfera atlântica com respeito a “justiça, punição, reabilitação, cor, classe, condição civil, direitos humanos e trabalho”1 (2).
Beattie é editor de uma das mais respeitadas revistas de estudos brasileiros nos Estados Unidos, a Luso-Brazilian Review, e traz, com essa nova publicação, uma importante contribuição às discussões ligadas ao Brasil Império. A recente produção historiográfica da escravidão e do abolicionismo busca oferecer uma visão mais complexa do período, indo além das tradicionais linhas materialistas ou da nova história focada na agência dos escravos.
O próprio autor parece ter clara a dimensão do que tem em mãos, ao oferecer de maneira convincente as principais razões da relevância do livro. Fernando de Noronha oferece um panorama único da administração de justiça no Brasil Imperial, pois seus documentos “revelam os crimes e criminosos que um sistema de justiça precário gastava recursos para julgar, condenar e exilar”2 (4). Trata-se, ademais, de uma detalhada microhistória das interações entre variadas esferas da vida social, possível graças à extraordinária quantidade de registros disponível, em que a colônia penal serve como “metáfora exagerada da sociedade brasileira ao exemplificar o processo de construção do estado em suas margens sociais e geográficas”3 (4). O arquipélago ressalta a circulação entre categorias das massas de “pobres ingovernáveis”4, processo que o autor chama de “deriva categórica”5 – conceito-chave para entender o Brasil de ontem e de hoje. Fernando de Noronha funciona como “um caso-limite institucional devido a seu isolamento, mão-de-obra perigosa e múltiplos propósitos como local de punição, exílio, reabilitação, colonização e produção”6 (6). Fernando de Noronha seria, além disso, um caso limite para a transformação de “noções de cor, escravidão e estado penal”7 (7). A história de Fernando de Noronha serve muito bem para comparações internacionais de sequenciamento e profundidade de reformas institucionais, em particular no âmbito da história comparativa do Atlântico. Por fim, “Fernando de Noronha fornece insights inesperados sobre concepções de gênero, sexualidade e conjugalidade heterossexual”8 (8).
O livro é estruturado de forma bem simples e didática. A Introdução define o objetivo da obra como o de traçar a história da colônia penal da ilha de Fernando de Noronha para, por meio dela, lançar luz sobre diferentes aspectos da sociedade brasileira. Nos nove capítulos em que o livro se divide, busca-se realizar esse objetivo. Começa-se oferecendo uma descrição da sociedade que habita a ilha, tais como a estrutura habitacional, a superpopulação carcerária, o mau gerenciamento de recursos naturais e o custo ambiental. Em seguida, centra-se na análise de como um sociedade escravocrata incorporou a penologia liberal após a independência, com o intuito de distinguir-se da ordem colonial e prover o novo regime de legitimidade, interna e externamente. Com base em um cuidadoso trabalho etnográfico, o terceiro capítulo demonstra como a corrupção contemporânea nas prisões do Brasil e alhures deve ser vista como o previsível gêmeo sombrio do ambiente penal planejado. No quarto capítulo, faz-se um mergulho nos registros documentais da ilha a fim de jogar luz nos pressupostos ideológicos e preocupações políticas de que se valiam as autoridades ao “enumerar, classificar e ordenar”9 (77) a população carcerária. Em seguida, examina-se como a administração da justiça reforça o sistema patriarcal, uma vez que a família nuclear era vista como um bastião da ordem social pelas autoridades imperiais. O sexto capítulo demonstra, com base em minuciosa pesquisa etnográfica, como os presidiários privilegiados eram distinguidos de seus pares plebeus a partir de critérios tais como cor, etnia e educação. O seguinte capítulo descreve o processo de freios e contrapesos forjado a partir das recorrentes tensões entre os funcionários indicados pelos governos imperial no Rio de Janeiro e provincial em Pernambuco. Práticas que de outra forma não se tornavam públicas vinham à tona quando casos de corrupção eram revelados em meio a essas disputas. O oitavo capítulo busca, nos registros dos escravos, dados que informem sobre a sociedade do Brasil Império, tais como o quão generalizada era a posse de escravos e o fato de que embora a justiça penal condenasse poucos cidadãos de riqueza e privilégio, não poupava os seus escravos. Finalmente, no nono capítulo, o autor aborda o debate sobre castigo corporal, pena de morte e escravidão. Fernando de Noronha, explica Beattie, “foi tanto um símbolo e uma parte literal do debate”10 (226). Na Conclusão, o autor aponta que o livro põe em evidência como diferentes tradições jurídicas e culturais dão forma às legislações e práticas em termos de pena capital, segregação, cor e gênero.
O trabalho minucioso de etnografia histórica realizado por Beattie tem o valor intrínseco de oferecer um raro registro, numa narrativa acadêmica e ainda assim acessível, da vida social no Brasil Império. Evitando anacronismo ou saudosismo, Beattie descreve a vida social, as relações de poder e o universo ideológico-cultural na colônia penal de Fernando de Noronha e como esta era um reflexo da realidade do Brasil continental. Ele contextualiza essas interações no mundo, em particular na esfera do Atlântico. Por exemplo na página 212, ao destacar que a oposição do jurista e político pernambucano Joaquim Nabuco aos crimes de honra contra mulheres, pena capital e a escravidão, se insere no debate mais amplo que se dava no âmbito do Atlântico, notadamente nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra. Apenas alguns capítulos, em particular o sexto e o oitavo, consistem em uma detalhada pesquisa etnográfica, o que pode afastar alguns leitores leigos.
O livro, embora teoricamente embasado e audacioso, tem um apelo que extrapola a comunidade acadêmica, ao lançar luz no Brasil contemporâneo. A população carcerária do Brasil consiste em mais de meio milhão de pessoas, a maioria das quais é masculina, pobre e negra. O autor põe em evidência que as raízes de questões atuais – como as revoltas em massa no sistema prisional no Brasil do século XXI (74), por exemplo, ou o que viria a ser nos anos 1940 a noção de democracia racial (217) – estão lá atrás, no século XIX. Trata-se de uma importante contribuição à historiografia do Brasil do século XIX, assim como para alguns dos principais debates públicos nos dias de hoje.
1 “[…] justice, punishment, rehabilitation, color, class, civil condition, human rights, and labor.”
2 “[...] its records reveal the crimes and criminals that a precarious justice system spent resources to try, convict, and exile.”
3 “[…] exaggerated metaphor for Brazilian society as it exemplified state making on its social and geographical margins.”
4 “Intractable poor”
5 “Category drift”
6 “Fernando de Noronha serves as an institutional limit case because of its isolation, dangerous labor force, and multiple purposes as a site for punishment, exile, rehabilitation, colonization, and production.”
7 “[…] notions of color, slave, and criminal status.”
8 “Fernando de Noronha provides unexpected insights into conceptions of gender, sexuality, and heterosexual conjugality.”
9 “enumerating, classifying, and ordering”
10 “Fernando de Noronha was both a symbolic and a literal part of the debate”