Bogotá: Universidad Distrital Francisco José de Caldas, 146 pp. |
Resenhado por Izabela Liz Schlindwein
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
O livro Libertas entre sobrados - mulheres negras e trabalho
doméstico em São Paulo (1880-1920) é resultado da dissertação
defendida em 2011 pela historiadora Lorena Féres da Silva Telles
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP).
Esta obra, lançada em 2014, torna-se fonte de pesquisa para
diferentes áreas do conhecimento. Por possuir uma característica
interdisciplinar, o livro pode interessar ao campo de estudos do
Brasil nos institutos de pesquisa sobre a América Latina e seus
pesquisadores/as das ciências humanas - história, sociologia,
antropologia - com foco em categorias como sociedade e trabalho,
desigualdades e subjetividades na fase do pré e pós-abolição em
São Paulo. Apesar de não aprofundar-se nas temáticas das teorias
antropológicas de gênero, o trabalho tangencia perspectivas que
podem também ser importantes para pesquisadores/as desta área.
O estudo das condições de trabalho das mulheres já torna a obra
politicamente propositiva. Ancorada na teoria da feminista Kia
Lilly Caldwell (23), em sua dissertação, Lorena Telles aponta
para a questão do gênero e da raça como prisma de interpretação
histórica. Ao adotar este posicionamento, a autora centra-se nas
metodologias nativas de sua área de conhecimento - a história -
sem deixar de reconhecer as contribuições de autoras do campo do
gênero.
Além de Kia Lilly Caldwell, Lorena Telles também se apoia nas
ideias de Ruth Rubbard (21), professora de Harvard que escreveu
sobre a dicotomia do trabalho produtivo e reprodutivo. A partir
da escolha desses diferentes marcos teóricos, é possível
reconhecer que a questão da passagem do trabalho escravo para o
livre no Brasil merece um olhar que inclui muitas disciplinas.
Lorena Telles divide a sua pesquisa em três partes: “Libertas e
escravas: da Província à Capital”, “Libertas na Capital:
trajetórias da escravidão e da liberdade” e “Entre ruas e
sobrados: trabalho e cotidiano”.
O primeiro capítulo recupera o contexto da última década da
escravidão em São Paulo, marcado por revoltas de escravos e
políticas emancipacionistas. Ajudaram a definir este conteúdo as
descrições de mulheres como a professora imigrante Ina von
Binzer (47). Em sua prática epistolar retomada por Lorena
Telles, a jovem preceptora alemã escreve sobre sua visão de
escravos fugidos e ex-escravos destutelados. Ela descreve que
eles viviam pelas matas, saqueavam a vizinhança e eram “mais
temíveis que os índios”. A eles juntavam-se “negros libertos e
vadios que não querem trabalhar”, completava a professora alemã
nas cartas que viraram livro - Os meus romanos, alegrias e
tristezas de uma educadora alemã no Brasil (Binzer, 1994:
152-153, apud Telles, 2014: 58).
Além das discussões sobre a emancipação de escravos escritas nas
cartas de Ina von Binzer, outro aspecto importante de seu
arquivo são seus anúncios de professora para filhos e filhas da
elite. Esses conteúdos dão pistas de como o trabalho branco e
europeu era muito bem aceito para as funções no círculo íntimo
das famílias abastadas. A preferência pelo trabalho branco é
aprofundada por Lorena Telles no terceiro capítulo de sua obra.
Se o primeiro capítulo está centrado nas práticas cotidianas
registradas em memórias, o segundo busca entender o dia a dia
por meio de documentos - dados de inscrições e contratos de
trabalho. Neste sentido, o estudo de Hebe Mattos (87) ajuda no
entendimento da ressignificação da palavra liberdade no processo
de superação do escravismo no Sudeste brasileiro.
O segundo capítulo descreve, ainda, como eram os contratos de
libertas que permaneceram em serviço mesmo após a alforria,
assim como os inventários que documentavam as vivências sociais
e a formação dos setores médios. Fundamentam esta parte do
trabalho as pesquisas das autoras Maria Luiza Ferreira de
Oliveira (95) e Enidelce Bertin (113).
E o terceiro capítulo representa o retorno para a vida diária na
pele de lavadeiras, engomadeiras, quitandeiras, amas de leite e
cozinheiras. Aqui, a ênfase está na diversidade de saberes e
experiências implícitas na categoria trabalho doméstico.
Dados sobre a distribuição sócio-ocupacional entre homens e
mulheres brasileiros e imigrantes auxiliam na construção de uma
memória possível sobre o processo de “branqueamento” de empregos
também nas áreas da educação ou o ramo hoteleiro gerenciado por
imigrantes.
Dentre as fontes mais importantes utilizadas pela autora estão
os documentos gerados em 1886, com o surgimento do Código de
Posturas Municipais sobre Criados e Amas de Leite da cidade de
São Paulo. As inscrições e contratos de trabalho registrados
apresentam as relações mediadas pelo trabalho de mulheres negras
escravas, libertas e descendentes livres que desempenhavam
atividades domésticas.
O grau de detalhamento desses documentos forneceu dados
sociológicos centrais para a pesquisa. Além de informações
básicas, como nome completo, idade, filiação, naturalidade e
traços físicos; o modelo formal de contrato de trabalho poderia
conter valores e datas de pagamento do salário e a função
exercida, horários de chegada e saída (como uma espécie e Livro
de Ponto) e considerações sobre onde a empregada dormia.
De uma forma geral, a pesquisadora encontrou mais de mil
inscrições nos registros de 1886: destes, 50% eram mulheres
negras, nascidas livres ou egressas da condição de escravas.
Seja como amas de leite, cozinheiras, copeiras, costureiras,
mucamas ou lavadeiras, as mulheres negras tiveram importantes
papéis nas casas de elites brancas. Migrantes das regiões
escravistas da Província, africanas livres e mesmo as nascidas
na Capital buscavam estratégias de sobrevivência a despeito de
um contexto de afastamento de atividades rentáveis e pouca
diversificação econômica.
Desta forma, podemos considerar que a leitura do livro escrito
por Lorena Telles torna-se uma boa oportunidade para conhecer
mais sobre esta fase de transição entre os séculos 19 e 20. A
pesquisa busca desconstruir as velhas perspectivas naturalizadas
encontradas em registros de detenções, relatórios e anúncios de
fugas em jornais.
O que interessa à autora é questionar o nível de liberdade
dessas mulheres, adquirido ao longo do tempo. A historiadora
defende que, apesar do suposto “fim” da escravidão, o modelo de
vida das mulheres que incorporaram profissões em casas de
famílias continuou silencioso e invisível.
Porém, a partir da tentativa de reconstrução do cotidiano do
trabalho em casas, fazendas, hotéis, confeitarias, repartições
públicas e escritórios de profissionais liberais, a autora
verifica que a resistência residiu na improvisação e recusa à
opressão do dia a dia.
Algumas se negavam a fazer horas extras e conseguiam aumentos
salariais ou até o direito a ter vida própria, constituir
família, frequentar cultos religiosos, participar de atividades
de lazer e vivenciar suas culturas. Mas suas conquistas não
vieram sem muitas brigas, abandono dos sobrados, assédio sexual
e surras após a recusa do escravismo doméstico.
Como é possível verificar, as mulheres negras não tiveram o
direito de participar dos processos político-institucionais que
envolviam a sua própria liberdade. Essa exclusão da arena
política e do trabalho bem remunerado já nascia com o
impedimento do acesso à terra e ao capital cultural adquirido
via educação formal. Sem alternativas, muitas viveram longos
processos de marginalização econômica, social e política. Sem
dúvida, o signo da discriminação racial impediu a inclusão e
participação social dos/as descendentes de escravos/as. Como se
não bastasse, muitas foram culpadas pela sua própria exclusão e
reforçadas em sua posição marginal.
O livro Libertas entre sobrados ajuda no entendimento dos
contextos históricos de um Brasil que até pouquíssimo tempo
ainda não havia regulamentado as profissões vinculadas ao
trabalho feito no interior das casas, embora fosse o país com a
maior população de trabalhadores domésticos do mundo em números
absolutos, segundo estudo realizado em 117 países pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado em 2013.
Os direitos deste universo de 7,2 milhões de empregados
domésticos em atuação no Brasil (6,7 milhões de mulheres e 504
mil homens) também precisam ser discutidos à luz da herança
escravocrata. Por muito tempo, esta classe foi ainda pior
remunerada, trabalhando sem jornada fixa, Fundo de Garantia ou
Seguro Desemprego. Uma fase da história que deve ser sempre
estudada para não ser esquecida.