Sabina García Peter e Marcela Suárez Estrada ­

 

Assimetrias do Conhecimento na América Latina

 
Através dos estudos sociais da ciência e da tecnologia reconhecemos que a ciência foi e segue profundamente elitista (...). Mas ainda assim, pode ser democratizada, e pode ajudar a desmontar esquemas negativos que estão muito arraigados na sociedade (...), pode ser usada para ajudar a desmontar a visão elitista reducionista de que há um só conhecimento verdadeiro, podendo demonstrar que pode haver distintos caminhos para lograr o conhecimento (Hebe Vessuri em entrevista para CROLAR Vol. 3(2), 2014)


No ano de 2012, CROLAR –Critical Reviews on Latin American Research – publicou seu primeiro volume onde se destacava a importância do tema das desigualdades na América Latina, como característica arraigada das configurações de relações entre Norte e Sul global. Neste novo volume dedicado à temática das “Assimetrias do conhecimento na América Latina”, voltamos a nos enfocar nas desigualdades, porém desta vez, relacionadas aos processos de produção e circulação de conhecimentos em/sobre/a partir da América Latina. Nosso interesse por este tema nasce da necessidade de refletir e discutir sobre a dita relação a partir de uma perspectiva que ponha no centro as assimetrias.

 

Neste sentido, utilizamos o termo “assimetrias do conhecimento” para referir-nos, por um lado, às assimetrias étnico-raciais, de gênero, de classe, entre outras produzidas, reproduzidas e legitimadas pelos processos de produção e circulação de conhecimento em/sobre/a partir da América Latina; mas também, às estruturas de poder que cruzam estes mesmos processos –por exemplo as tensões entre o local e o global, os diversos tipos de conhecimento, os sujeitos que sustentam o mesmo– e que estabelecem hierarquias de caráter epistemológico. Ambas as dimensões requerem fazer visíveis os mecanismos, práticas, crenças e discursos que estão imersos nestes processos e suas implicações nos processos de exclusão aos quais levam.

 

Não se pode dizer que a análise das assimetrias do conhecimento na América Latina seja um tema novo. Ainda assim, sua discussão se encontra desconectada em diferentes corpos de literatura e sua análise fragmentada em diversas disciplinas. Na América Latina, como uma das regiões marcadas historicamente pelas conexões e tensões entre o local e o global, prevalece um forte discurso que afirma que a ciência e a tecnologia são necessárias para alcançar maiores níveis de desenvolvimento. Sem o objetivo de contradizer este argumento, porém, com a idéia de mostrar a complexidade deste processo, com este volume esperamos contribuir para a construção de pontes de diálogo entre os diferentes corpos de literatura e tipos de conhecimento. Sem dúvida, os desafios teóricos e empíricos do tema, a natureza mesma das assimetrias, assim como as diferentes formas de poder que estão imersas na produção das mesmas, determinaram nossa motivação para dedicar um volume ao tema dentro de CROLAR.

 

Neste volume, incluímos uma entrevista exclusiva com a destacada antropóloga argentina Hebe Vessuri, a quem convidamos para refletir sobre o tópico. A doutora Vessuri dedicou sua trajetória acadêmica ao tema das assimetrias do conhecimento a partir de uma perspectiva dos estudos sociais e da ciência e tecnologia. A entrevista gira ao redor de quatro pilares: a existência de assimetrias do conhecimento tanto locais como globais; os processos e práticas às quais se refere a noção de assimetrias do conhecimento e as contribuições dos estudos sociais e da ciência e tecnologia neste assunto; o papel dos organismos internacionais na diminuição de assimetrias do conhecimento; e a publicação no final de 2014 do livro Perspectivas latinoamericanas en el estudio de la ciencia, la tecnologia y el conocimiento, organizado pela Rede ESOCITE, na qual colabora como editora e autora.

 

A seção “Focus” desta edição conta com uma variedade de livros publicados entre 2011 e 2014, que podem ser agrupados em quatro categorias. Em primeiro lugar, apresentamos quatro livros que se referem à relação entre saber, produção de conhecimento e poder no contexto latino americano; três deles, em relação às instituições de ensino superior. Um exemplo é o livro de Fernanda Beigel, The politics of academic autonomy in Latin America, no qual se analisa a falsa contraposição da produção de conhecimento – original e autônoma – que se realiza nas universidades estadunidenses contra o conhecimento politizado e dependente que se produz nas universidades latino americanas. Desde outro âmbito institucional, se encontra o livro de Arndt Brendecke, Imperio e Información. Funciones del saber en el dominio colonial español, que dá conta do papel dos diferentes tipos de conhecimento na geração de assimetrias e seus significados na hierarquia social colonial.

 

Em segundo lugar, se encontram quatro livros que refletem e analisam a partir da perspectiva poscolonial os discursos, práticas e mecanismos legitimados pelo conhecimento, e que contribuem para a reprodução de assimetrias de poder entre países, gêneros e à hierarquização de diferentes tipos de conhecimento. Nesta seção encontramos livros de autores clássicos como Boaventura de Sousa Santos, Walter Mignolo, Jean e John Comaroff e Javier Sanjinés, mas também um livro derivado da tese de doutorado de Julia Roth, Decolonial Practices: Hemispheric Readings of Gender, Genre & Coloniality in Victoria Ocampo’s Essay Frida Kahlo’s Diary, Rigoberta Menchu’s Testimonio, que aposta numa reflexão decolonial a partir da relação entre a categoria de gênero e suas tradicionais coordenadas geográficas de oriente e ocidente.

 

Em terceiro lugar, encontramos duas contribuições grupais a partir do campo científico dos estudos sociais da ciência e tecnologia latino americanas, cujo foco durante os últimos anos está centrado em estimular o desenvolvimento deste campo de estudo a partir de uma perspectiva crítica e regional.

 

A seção termina com três livros que nos permitem aproximarmos da problemática das assimetrias do conhecimento através de uma perspectiva local/regional, com uma contribuição antropológica para o caso mexicano e através da história do meio ambiente para o caso da Amazônia. Da mesma forma, o livro Political Economy, Communication and Knowledge: A Latin American Perspective (Bolaño et al.), nos faz refletir sobre o papel das novas tecnologias nos modos em que o capital se expande e se concentra, assim como o processo de mercantilização de atividades nos âmbitos culturais e educativos na América Latina.

 

Por outro lado, as duas resenhas incluídas na seção “Intervenções” nos convidam a pensar sobre as assimetrias do conhecimento a partir de uma perspectiva da arte e do jornalismo literário, com uma obra que indaga a produção de criadoras visuais costarriquenses em relação ao corpo feminino – como um emaranhado simbólico onde é possível dar conta das assimetrias que derivam das relações de gênero–, e uma crônica de viagem onde o relato do protagonista pode ser visto como um processo de produção de conhecimentos marcado por assimetrias derivadas da nacionalidade, a religião e as relações com outros.

 

Dentro da seção “Clássicos revisitados” se apresenta uma obra central para entender a lógica das assimetrias do conhecimento: Center and Periphery: Essays in Macrosociology de Edward Shils de 1975, onde pela primeira vez se propõe falar dos conceitos de “centro” e periferia” no campo das ciências sociais, e que foi amplamente desenvolvido durante as décadas seguintes, para alcançar hoje em dia uma renovada importância na América Latina. O mesmo Leandro Rodríguez, autor da resenha, discute estes conceitos em seu trabalho Centers and peripheries in knowledge production, em relação à circulação do conhecimento científico social entre países centrais e periféricos, e as trajetórias de carreira de acadêmicos nos últimos; e que também é resenhado na seção “Focus” deste volume.

 

Enfim, na seção “Debates atuais” apresentamos o livro Incluyendo sin excluir. Género y movilidad en instituciones de educación superior (Chan et al.), que se ocupa do tema da inclusão social na universidade e o desenvolvimento de propostas para promover-la, e o livro mais recente de Scott Mainwaring e Aníbal Pérez Democracies and Dictatorships in Latin America. Emergence, Survival, and Fall, que através de uma perspectiva de política comparada explica o surgimento, a sobrevivência e a queda dos regimes políticos na América Latina desde 1900 até 2010.

 

Definitivamente, a leitura dos livros que compõe este novo volume nos convidam a dialogar, conectar e refletir sobre/ a partir de diferentes perspectivas e realidades em que se manifestam as assimetrias do conhecimento na América Latina, ao mesmo tempo que permitem identificar três debates a partir de onde se pode abordar o tema: 1) as políticas de conhecimento locais e globais; 2) a legitimação das assimetrias de raça, gênero, etnia e classe produzidas através do conhecimento; 3) as hierarquias entre saberes, conhecimentos e experiências, e seu papel na importância destas na construção do conhecimento na “modernidade”.

 

De forma pessoal, tomamos este desafio de editar este volume como um modo experimental de questionar o modelo de produção do conhecimento no qual estamos imersos. A partir de nosso reduzido espaço de ação e com nossas próprias limitações, tratamos de deixar visível a temática, porém conscientes de não ter sido capazes de superar muitas dessas assimetrias. Não obstante, relacionado às diferentes seções que compõe este volume, oferecemos ao leitor uma reflexão a partir de diversas disciplinas, perspectivas e diálogos interdisciplinares que permitem analisar as relações de poder de raça, gênero, etnia e classe, assim como interrelações imersas na produção de assimetrias legitimadas no conhecimento.

 

Esperamos ter despertado seu interesse por esta temática e que este novo volume de CROLAR seja um convite para seguir repensando o campo da produção e circulação de conhecimento através de um olhar crítico. Pelo menos para nosso editorial isso se desenvolve num desafio constante: até agora, um aspecto importante, no qual CROLAR se centra é em conectar campos acadêmicos, por exemplo, através da publicação de resenhas de livros em outros idiomas, distintos da publicação original. Esperamos que este desafio se torne um compromisso cada vez maior.

 

Desejamos-lhe uma leitura enriquecedora!