Seth W. Garfield (2013)

In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the nature of a region


Durham and London: Duke University Press, 343 p.

 

Resenhado por Vanessa Boanada Fuchs

Transcultural Governance of the Environment in Latin America, Graduate Institute of International and Development Studies, Geneva

 

 

O livro de Seth Garfield é uma história de guerra (Segunda Guerra Mundial), de negociações diplomáticas (entre Estados Unidos e Brasil), de construção e integração de uma região (Amazônia) e, por via dela, da ideia de nação e soberania brasileiras. É também uma história de migração e trabalho (o nordestino que se transforma em soldado da borracha), e de construção da cidadania através tanto de direitos contratuais como de apropriações debaixo para cima da linguagem dos direitos sociais. Nesta história, a natureza amazônica é central: pano de fundo para o desenrolar de eventos históricos, ator, obstáculo, oportunidade e, principalmente, locus de constituição de perspectivas plurais – que moldaram e foram moldadas por esta natureza. Finalmente, é uma história de como a dependência relativa de recursos naturais afeta diferentes atores de maneiras desiguais, o que resulta também em formas distintas de apropriação e construção da relação sociedade-natureza.

 

Do ponto de vista teórico, apesar de formalmente inserido no eixo temático da história do meio ambiente (environmental history), a visão de mundo do autor – uma perspectiva construtivista moderada – o leva a construir seu próprio quadro teórico para o estudo da Amazônia. Inspirado pela visão de que “lugares são construídos e experimentados como matéria, artefatos ecológicos, e intricadas redes de relações sociais” (Harvey 1996), ele esposa, por exemplo, a metodologia proposta pela teoria ator-rede (Latour 1993) explicando natureza e sociedade de forma relacional e derivada de processos contestados. São exatamente estes processos que são delineados por Garfield de maneira interdisciplinar e transnacional, com foco nos atores (ou como ele mesmo chama, “instrumentos” ou “intermediários”) que constroem a natureza na medida em que a modificam, são constrangidos por, ou adaptam-se à ela.

 

O livro relata, assim, o entrecruzamento de projetos para a Amazônia, em intervenções de um gênero de etnografia histórica calcada em impressionante suporte documental. Informado por Appadurai (1986), o autor segue o objeto – a borracha – traçando suas conexões com a Amazônia em arquivos de diversos estados brasileiros e estadunidenses, presenteando o leitor com pitadas de anedotas históricas que nos transportam lá: ao coração das memórias que constroem ideias de Amazônia. Ainda que o corte temático entre os 5 capítulos do livro não seja estanque, mas dialógico, estes servem de base para delinear a contribuição do autor às diversas áreas dos estudos amazônicos.

 

Garfield contribui para análises geopolíticas sobre a expansão da fronteira nacional e consolidação da ocupação física e simbólica do território amazônico empreendidos pelo governo Vargas. Dialoga com os estudos de ciclos econômicos (aqui em particular o segundo ciclo da borracha), destrinchando os esforços do governo na planificação do desenvolvimento regional para “vencer a natureza” e “melhorar a região”, aprofundando contudo no processo a sua inserção especializada no mercado mundial (Capítulo 1).

 

Colabora também com os estudos sobre a Segunda Guerra mundial e o papel do controle de recursos naturais para o sucesso de estratégias militares. Dada a urgência estadunidense após a perda do acesso a fontes asiáticas, aumentar a produção amazônica de Hevea brasiliensis com vistas a suprir a demanda da indústria militar se tornou chave para a vitória dos aliados. Nesta linha, o estudo também lança um olhar crítico sobre a ajuda externa, condicionada a uma forma condescendente de engajamento e limitada no tempo (até o desenvolvimento da borracha sintética) (Capítulo 2).

 

Os projetos oficias dos dois países em relação à Amazônia, longe de fixos, resultaram de batalhas de opinião em âmbito doméstico. Apesar das diferenças, dada a vulnerável posição dos Estados Unidos em sua dependência em relação à borracha, e em uma época em que modos de produção artesanais predominavam na Amazônia, os projetos brasileiros e estadunidenses convergiram em um ponto: a necessidade de transplantar trabalhadores para preencher os “vazios demográficos” e melhorar (racionalizar) a produção nos seringais – o que foi empreendido através de agências de cooperação binacionais (Capítulo 3).

 

Mais além de esmiuçar as razões que levaram à cooperação entre os países no que diz respeito à mão-de-obra, Garfield também busca desnaturalizar/desconstruir a vocação do soldado da borracha – homem, migrante, “cearense”. Dando conta dos relatos não apenas sobre as secas que exerceram papel repulsor (fator ambiental) nos locais de origem, mas também explorando questões sócio-econômicas, Garfield demonstra que desastres ecológicos atingem diferentes camadas da população de formas desiguais e restringem (mas não determinam) oportunidades. Assim, relata como fatores culturais, ecológicos e sócio-econômicos, foram explorados pela propaganda das agências da empreitada binacional (Capítulo 4).

 

Finalmente, as histórias destes mediadores da natureza amazônica são revisitadas e cruzadas até o período de retração da ingerência estadunidense, relatando as percepções de sucessos e fracassos da Guerra da Borracha, o legado das instituições de planejamento regional, as resultantes plurais do processo migratório, os múltiplos arranjos sociais entre seringueiros e seringalistas, as “deserções” e resistências cotidianas ao controle (contratual, das técnicas “eficientes”, da violência), e finalmente as apropriações por parte dos soldados da borracha da retórica do heroísmo e dos direitos de cidadania (Capítulo 5).

 

A cidadania da floresta, gestada segundo o autor na era Vargas, se reinventa no fim dos anos 80 enquanto green guerrilla (soldados verdes), associada a movimentos transnacionais de proteção ao meio ambiente. Garfield conclui contextualizando seus esforços de pesquisa histórica nos marcos de relevância cientifico, mediático e políticos atuais sobre a preservação da biodiversidade – debates estes que, incorporados pelos cidadãos da floresta e traduzidos em demandas concretas de direito, vem transformando o cenário social e fundiário amazônico (Epílogo).

 

Dá-se falta, porém, dos povos indígenas. Talvez obscurecidos pelas próprias fontes da época que privilegiam a construção do cidadão amazônico como trabalhador miscigenado, os povos indígenas são raramente mencionados (ora indistintamente misturados ao trabalhador dos seringais, ora presente nas lembranças como ameaças à expansão da atividade da borracha), mas jamais contemplados enquanto atores em si mesmos no “fazer” da Amazônia. Ademais, para os que se interessam pela perspectiva indígena, a denominação dos trabalhadores migrantes nos seringais por seus patrões e tecnocratas enquanto “bravos” ou “mansos”, de acordo com a experiência prévia e adaptação ou não ao trabalho dos seringais (181), remete fortemente à utilização dos mesmos termos aos índios aldeados e não aldeados, aliados ou hostis, submissos ou não ao regime de trabalho, durante o período colonial português (Farage 1991, Perrone-Moisés 1998)1 – o que não me parece mera coincidência, mas representativo da perpetuação do legado colonial que perpassa de maneira interseccional não apenas etnicidade mas status social, econômico e político na constituição da Amazônia brasileira.

 

Contudo, feita a ressalva, me parece que esta ausência não reflete um desinteresse geral do autor pela questão indígena, e pode ser preenchida por outros de seus estudos (Garfield 2001); ademais, a constatação não diminui o valor do trabalho que é rica fonte de informações para os acadêmicos interessados em estudos amazônicos com foco no período Vargas/Segunda Guerra Mundial (seja do ponto de vista geopolítico, econômico, diplomático, ambiental ou social). Outra referencia do autor disponível aos leitores de língua portuguesa e sobre o mesmo período histórico e temática amazônica é o artigo “A Amazônia no imaginário norte-americano em tempo de guerra” (Garfield 2009).

 

A meu ver, a original contribuição do presente livro é clara: a idéia de guerra na Amazônia não está apenas relacionada aos acontecimentos internacionais, mas representa uma “metáfora [atualizada] para a multifacetada e desigual batalha por poder na e sobre a região”.

 

 

 

 

1 Farage, Nádia (1991): As muralhas dos sertões : os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. São Paulo, SP: Paz e Terra.

Perrone-Moisés, Beatriz (1998): “Índios Livres e Índios Escravos: Os Princípios Da Legislação Indigenista Do Período Colonial (séculos XVI a XVIII).” Em: Carneiro da Cunha, M. (ed.). História Dos Índios No Brasil, 2nd ed. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, pp. 115–32.